quarta-feira, 19 de setembro de 2007

"no pão de açucar/ de cada dia/ dai-nos senhor/ a poesia de cada dia", oswald de andrade

ralo

sente

o ralo da pia

o rolar da chuva


todo santo dia

da semana


em toda alma humana

o pio

dum maná

sente



doce

um doce na mesa

duas idéias a vagar



ninguém sabe

o sabor a pagar


Retrato

Tristão

ao ver a foto dela acesa

estampada num brochado

destampou as lágrimas

chorou corou orou jorrou

jorrou dez tonéis

chorou cem vasos

corou mil couros

orou milhões de gotas

do mais puro decanto

de cantos de alegria

e hinários de tristeza


e ela

ali alocada

no retrato exposto

esposando como novo

aquele velho papel mocho

isso sim o entristeceu

mas não seu broche

que mesmo espetando

o abrochado dormido

sentiu ser menos tristonho

do que a ver deslocada

numa folha bisonha


(poemas de Paulo Ribas)


***


pôr-do-sol

a lâmpada do destino acende

transforma as nuvens de ontem em acaso


a razão ratifica o sentido do tempo

contornando de lápis o espaço inanimado


não encontraremos nossa espontaneidade perdida na névoa

nem um lapso de ceticismo escapará no horizonte


esotérica


nesta carne bruta

que nasce o mato do deserto

sentou um duende

que me contou histórias eróticas

cheias de bravura

apesar de seu tamanho

vergonhoso e frágil


o pensador

pedaços do universo

numa latitude nunca antes entrelaçada

têm algo de patético

intrínseco na natureza burra


às vezes entro em harmonia com toda a voz

que sai da garganta

e morre no ar

(poemas de João Pedro Wapler)


***

     V

uma árvore tingida de vermelho
um casarão de pedra
o verde que disfarça o precipício
que margeia o rio
que serpenteia no vale

o mesmo rio que não pretende
apenas segue
para misturar-se ao outro
desaguar-se no outro
trocar-se
transcendência do individual

triste sina a das gentes
que não coisas
mas viventes
passam por sua aqui permanência
a ignorar
o propósito de existir
com sentimento
de rio

VI

ossos e veias
pele e entranhas
a voz que corta

peças de um quebra-cabeça
que não mais se encaixam
demônios guardados em
jaulas de algodão

quanto pode durar
a solidão que ronda nosso canteiro
quando a casa toda vira um imenso
corredor?

ficam notas que não encontram concerto
a fragilidade que toca
quando o melhor não foi suficiente

as chamas queimam somente quando
alimentadas

peco minha essência
com sede e fome
enlouqueço pedras limos e musgos
aves balanço
imaginando alturas

cuspo o sangue do meu fracasso
pela desistência

VII
o cheiro das panelas no fogão
convida
e com licença invade a casa
ao redor da mesa
delicadamente vestida
com a coberta do casamento
acomodam-se três gerações
entre histórias lembranças
e paradas maneiras
o barulho dos talheres
embala o riso
sobremesa do coração

almoço de domingo:
alimenta convivências
engordando vínculos


(poemas de Deisi Beier)


***

1-
dentro da escola,
revolver.
revolvo o vidro da infância,
balas , bolitas,
cores disparadas
à esmo
a memória explode
no raspão
estilhaçando a crença




2-
o tempo que passo na cozinha
preparo palavras
tendo algum trabalho
em esquartejar os dedos
enquanto dedilho idéias
arrancando a pele
fisgo substantivos
abstraio moquecas
dendês e adjetivos
todo o provérbio é gustativo
papilas unidas
cimentam papoulas
que no molho
( abduzidas palavras )
polvilham estrelas



3-
procurei poemas no opúsculo professoral
as palavras pairavam
penas pequenas sem ter onde pousar
abri a folha branca
e nada
botei a mão
em concha
andorinha voou
abri o peito
redemoinho de pó
se encaixaram todos


(poemas de Isolde Bosak)






sábado, 8 de setembro de 2007

os imprecisos reunidos


leituras à viva voz (fotos: daniela montano)

Segundo Wittgenstein, os “problemas filosóficos” são produzidos quando o que deve ser silenciado termina por ser dito. O que pode ser expresso com clareza, sem erros de linguagem (afasias) não seria, portanto, poesia. Por outro lado, diz-se com uma certa insistência - o que, aliás, deveria nos conduzir a uma suspeição ou resguardo com relação ao aspecto avassalador da afirmativa que segue - que a poesia “diz o indizível”. Mas, se Wittgenstein tem razão quando afirma que “acerca daquilo de que não se pode falar, deve-se silenciar”, como emprestar credibilidade ao supostamente indizível que a linguagem poética materializaria no lance de sua invenção? Efetivamente, a poesia diz o indizível? E como, em caso afirmativo, ela o diz?
post-scriptum:
na próxima postagem "a poesia de cada dia" dos poetas do curso.

(ronald augusto)